Estamparia Africana por Celso Lima
Um dos maiores acervos de técnicas de estamparia artesanal se encontra na África, aonde durante milhares de anos processos de estampar nasceram ou foram assimilados de outros povos. Sendo um grande continente, a África nos oferece uma diversidade de manejo e criação muito grande na estamparia têxtil. No norte da África, árabe desde o século VII, a tradição de estampas está ligada à tapeçaria. Minha pesquisa da estamparia africana teve início justamente com o estudo dos padrões das tapeçarias tunisianas kairouan (zerbîya) e beduínas (tribos Hamâma, Mahadba, Drid e Ouled Bou Ghanem). A tapeçaria zerbîya reflete sua influência anatólia e é recente na Tunísia, com suas padronagens geométricas marcadas por cores vívidas (‘allûsa), com motivos presentes também na tapeçaria marroquina de Rabat e na argelina de Setif. A tapeçaria beduína tunisiana é esplêndida, e os motivos são ricos, com variações regionais, e nos qtif adquirem formas geométricas: são pássaros (‘asfûr), rosas (werd), lua (qanra), pata de leão (keff es-sîd), composições com vários elementos (hadra), serpente e sapo (hne^s û jrân), entre outros os temas dessa rica tapeçaria. Todos os padrões são elaborados em “mapas” previamente desenhados para os teares. Os tecidos do norte da África são produzidos com forte influência da tapeçaria, seja no urdume ou na estampa.
Já a África sub-saariana nos oferece um universo de técnicas de estamparia por impressão e tinturaria, e o que me levou à África foi o batik, essa maravilhosa técnica criada pelos hindus para a estamparia de têxteis com máscaras de reserva e tingimentos. O batik é feito em vários países africanos, desde a costa oriental (Quênia e Moçambique) até a costa ocidental (Nigéria, Gana e Benin, entre outros). Não é correta a afirmação de que os africanos conheceram a técnica através dos holandeses, que a levaram para o continente trazida da ilha de Java, então colônia holandesa, por volta do século XVIII. Na verdade é ainda mais antiga a migração de indianos para a costa oriental africana, e foi por mãos hindus que o batik aportou na África. A iniciativa holandesa é importante no desenvolvimento do processo fabril dos tecidos em batik estampados por máscaras de cera aplicadas por cilindros de cobre, que passaram a ser fabricados nas últimas décadas em países como Nigéria e Costa do Marfim. É importante uma observação: “Wax Print” não é o nome de uma técnica, mas de uma empresa holandesa de estamparia têxtil presente na África que estampa por métodos industrializados em apenas um lado do tecido, sendo que alguns de seus padrões “reproduzem” batiks. Na Nigéria e Gana era comum o batik ser feito com moldes vazados dos desenhos, geralmente em couro, para aplicação da cera. Acredita-se que esses moldes tenham se originado como uma versão em positivo dos carimbos de madeira utilizados noQuênia para estamparia dos antigos kikoi (hoje os kikoi não são mais estampados), mas muitos motivos dos moldes remetem às matrizes em cabaças para estamparia dos “adinkras”, tecidos com estampas por carimbos do povo ashanti de Gana. As cabaças esculpidas pelos ashantis são magníficas, com delicados motivos geométricos que produzem belíssimas padronagens. Os tecidos “adinkra” são feitos para ocasiões especiais e rituais.
O domínio da tinturaria pelos africanos é antigo e há séculos é responsável pelas belas cores de seus têxteis. Tingidos com índigos e outros pigmentos naturais como os terrosos e a cochonilha, a importância da tinturaria africana reside na competente utilização dos mordentes. Exemplo disso é a engenhosa técnica de estamparia por mordentes vegetais e lama dos tecidos bogolan do Mali. Esses tecidos produzidos pela etnia Bambara são preciosos em suas cores contrastantes, geralmente em tons de cáquis, café e preto,com detalhes em branco produzidos à cal sódica, e suas padronagens se compõem de grafismos fonéticos e decorativos, com representações labirínticas. Esses labirintos geométricos também estão presentes na estamparia dos povos de etnia kuba do Congo, seja nos seus “veludos” de ráfia ou nos pequenos tecidos em retângulos, costurados, aplicados e bordados com belos grafismos, tingidos também com terras e taninos. O hábito dos kuba de tecerem suas peças em pequenos teares portáteis, produzindo pequenas peças que depois são emendadas e costuradas também é característico dos tecidos “kenté”, dos ashantis do Gana. São faixas estreitas multicoloridas, em listras e xadrezes, que são costuradas pelas laterais. Originalmente produzidos com fios de algodão e seda, hoje os “kentés” recebem fios sintéticos na trama, comprometendo muito sua qualidade e beleza.
E há muito mais. A tecelagem e estamparia africana são superlativas. Para encerrar escolhi meu preferido, o luxuoso e antiquíssimo adire-alabere. Essa maravilhosa técnica de estamparia por fio tinto em dobras e costuras é com certeza um dos mais ricos processos de estampar conhecidos. Os adires são produzidos por amarras com alinhavos, que podem ser feitos à mão ou em máquinas de costura com pontos largos. Os motivos são riscados previamente à carvão sobre os tecidos em dobras. Há centenas de maneiras de dobras e plissagens nos adires, e cada uma produz um resultado singular, aliado ao desenho alinhavado. Suas padronagens simétricas e multitexturadas são deslumbrantes. Em países como Burkina-Faso, Camarões e Gambia os adires são geralmente monocromáticos, em indigo ou mogno. Já a Nigéria, Senegal e Serra Leoa produzem adires multicoloridos, de cores vívidas. Hoje o adire-alabere corre um sério risco de desaparecer, pois as populações que os produzem estão seriamente ameaçadas por guerras, doenças e a fome. Além disso todo o acervo de tecelagem e estamparia africano passa por uma adaptação para o processo de produção fabril, aonde os cânones originais são desrespeitados e abandonados, descaracterizando e empobrecendo esse rico tesouro da humanidade: os têxteis africanos.